20080128

"Carta aberta à Senhora Ministra da Educação" [copy paste and go....]

por Luís de Miranda Correia| 2007-04-10

Senhora Ministra, este é o estado calamitoso em que se encontra o atendimento a alunos com NEE. É um facto que só vem uma vez mais provar a necessidade de se traçarem objectivos, cuja coerência se baseie nos resultados da investigação mais recente acerca do modo como os alunos devem adquirir conhecimentos e valores morais.

Hoje em dia, nas nossas escolas, o processo de ensino e aprendizagem é deveras complexo. Há imensos factores que podem contribuir para uma melhor ou pior aprendizagem por parte dos alunos - o grupo socioeconómico a que pertencem, os conhecimentos que trazem para a escola, a motivação para as aprendizagens, o seu nível de desenvolvimento e, claro, a preparação dos professores.

No caso dos alunos com necessidades educativas especiais (NEE), e tendo em conta o movimento da inclusão, ou seja, a inserção destes alunos nas escolas regulares, haverá ainda outros factores a ter em conta se pretendermos atender com eficácia ao seu desenvolvimento global - académico, socioemocional e pessoal. De entre estes factores realço as prevalências, características e necessidades dos alunos com NEE, a formação dos professores e a existência de recursos especializados, comummente designados por serviços de educação especial, necessária, tantas vezes, para a elaboração de programas educativos eficazes.

É precisamente sobre estes factores que gostaria de chamar a atenção, uma vez que a forma como eles têm vindo a ser encarados pelo Ministério que V. Exa. dirige, designadamente pela Secretaria de Estado da Educação (SEE) e pela Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC), tem deixado a educação especial à beira de um ataque de nervos, com as consequências negativas que daí advêm para os alunos com NEE, lesivas dos seus direitos e dos de suas famílias.

Reportando-me, em primeiro lugar, à prevalência de alunos com NEE, a percentagem avançada pela DGIDC, sem ter efectuado qualquer estudo de prevalência fidedigno, é de 1,8%. Ora, todos os estudos de prevalência efectuados noutros países (como, por exemplo, os EUA) apontam para prevalências na ordem dos 10% a 12%. Assim sendo, tendo em conta que a nossa população estudantil é de cerca de 1 500 000 alunos e considerando apenas uma prevalência de 10%, em Portugal temos mais de 100 000 alunos com NEE entregues à sua sorte.

Quanto às características e necessidades dos alunos com NEE e à importância de as determinarmos para podermos elaborar programações educativas eficazes, a DGIDC comete mais um erro de palmatória ao pretender identificar e classificar estes alunos usando a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Não é difícil perceber-se que a CIF emana de uma instituição especializada das Nações Unidas, eminentemente clínica, a Organização Mundial de Saúde (OMS) que, ao referir-se-lhe, diz que, "Como novo membro da Família de Classificações Internacionais da OMS, a CIF descreve a forma como os povos vivem com as suas condições de saúde... A CIF é útil para se compreender e medir os resultados de saúde...". A DGIDC cria, assim, uma situação caricata, uma vez que a CIF é uma classificação que diz respeito à saúde, embora a maioria dos profissionais de saúde nem sequer a use, podendo qualquer extrapolação para a educação trazer consequências desastrosas para os alunos com NEE. Esta minha afirmação é corroborada por dois eminentes especialistas americanos de renome mundial, James Kauffman e Daniel Hallahan, a quem pedi parecer, afirmando o primeiro que "o uso da CIF para fins educacionais seria um erro muito sério, mesmo trágico" e o segundo que "qualquer classificação que não reconheça os efeitos das NEE no funcionamento educacional (como é o caso da CIF) é irrelevante".

No que respeita à formação de professores, inicial e especializada, e começando pela inicial, verifica-se que, na maioria dos países que se preocupam com a educação dos alunos com NEE, é dada uma atenção muito especial às necessidades de formação dos professores do ensino regular no que concerne à aquisição de experiências que lhes permitam trabalhar com estes alunos. São disto exemplo as posições tomadas pelos departamentos de educação de vários estados dos EUA que exigem que "todos os professores sejam versados em todas as facetas da educação, incluindo a da educação especial" (Independent, 28 de Junho de 2006) e pelo Governo britânico que, de acordo com um relatório elaborado pelo "Commons Education Skills Select Committee" refere que "A preparação em Necessidades Educativas Especiais deve ser parte integrante da formação de professores" (The Guardian, 2 de Julho de 2006). Contudo, o nosso país parece não subscrever estas posições. Pelo contrário, ao abrigo do Processo de Bolonha, tivemos, nesta matéria, uma oportunidade única de melhorar significativamente a qualidade dos cursos que dão acesso à docência. No entanto, o Decreto-Lei que define as condições necessárias à obtenção de habilitação profissional para a docência, aprovado recentemente, não refere nem uma palavra sobre o assunto, chegando ao cúmulo de revogar o Artigo 15.º, Ponto 2, do Decreto-Lei n.º 344/89, de 11 de Outubro, que determinava que "Os cursos regulares de formação de educadores de infância e de professores dos ensinos básico e secundário devem incluir preparação inicial no campo da educação especial". E, nessa altura, ainda nem se falava de inclusão. Resultado deste comportamento desastroso: a maioria das instituições de ensino superior não está a considerar unidades curriculares respeitantes a estas matérias na adequação dos seus planos de estudos.

Quanto à formação especializada, espera-se, pelo menos, que a legislação que eventualmente estará para sair não se apoie na CIF, uma vez que a preparação cuidada de educadores e professores para o exercício de novas funções exige a implementação de um modelo de formação especializada, consistente, planificado e seleccionado, de acordo com a filosofia comum definida pelas e para as escolas/agrupamentos.

Finalmente, há ainda a considerar o papel dos recursos humanos especializados que não se devem restringir ao docente de educação especial, dado que, na maioria dos casos de alunos com NEE, o recurso a outros especialistas é uma constante, uma vez que, para além do apoio académico, ele poderá necessitar de outros apoios, de cariz psicológico, social, terapêutico ou, até, médico. Contudo, nas nossas escolas assiste-se a uma constante pedinchice que geralmente resulta em nada ou em esperas de meses ou até de anos para se ter acesso a alguns desses serviços, premiando-se tantas vezes o aluno com NEE com uma retenção.

Senhora Ministra, este é o estado calamitoso em que se encontra o atendimento a alunos com NEE. É um facto que só vem uma vez mais provar a necessidade de se traçarem objectivos, cuja coerência se baseie nos resultados da investigação mais recente acerca do modo como os alunos devem adquirir conhecimentos e valores morais. Estes objectivos são fundamentais quando se pretende articular uma reorganização educativa, neste caso, da educação especial, uma vez que, se mal formulados, o resultado será uma tremenda confusão. Este parece ser o caso, já que os objectivos em que se apoia a reorganização da educação especial, formulados pela Secretaria de Estado da Educação e, por arrastamento, pela DGIDC, são da responsabilidade de indivíduos que embora detenham o poder de decisão, não parecem ter em conta o conhecimento científico, nem possuí-lo, mas tão-somente as suas verdades e prioridades.

Uma última palavra, Senhora Ministra, que peço que tenha em consideração, é a de promover um diálogo, que se apoie nos saberes de investigadores e especialistas e na experiência de docentes e pais, que contribua para a defesa intransigente dos interesses dos alunos com NEE, pondo assim cobro a situações de negligência e de exclusão funcional experimentadas por um número considerável desses alunos, cujo direito a uma educação igual e de qualidade lhes é garantido nos artigos 71.º e 74.º da Constituição da República Portuguesa. O nosso país não se pode dar ao luxo de menosprezar, diria até, de alienar milhares de crianças e adolescentes, mantendo um indiferentismo sociopolítico e educacional que em nada favorece os seus direitos e o seu futuro.


* Professor Catedrático
Director da Área de Educação Especial do IEC - Universidade do Minho

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