20080319

Resposta de Graça Pimentel ao jornalista que escreveu a aberração “A senhora ministra”

Exmo. Senhor António Ribeiro Ferreira

Chegou-me às mãos o seu artigo “A senhora ministra” que considero nojento e de uma injustiça atroz. Os jornalistas e os fazedores de opinião, de repente, viraram todos grandes conhecedores dos problemas da educação não superior e escrevem bacoradas imundas e injustas como as que constam deste documento.

Tenho 60 anos, 36 dos quais dedicados à educação e não posso deixar passar em claro as infâmias de que estou a ser vítima.

A pouca vergonha dos furos nos horários dos alunos não existe no ensino básico e secundário. Apenas no superior e não vejo os jornalistas tocarem nos intocáveis professores do superior. Os horários dos alunos não podem, por lei, ter furos. Surgem situações em que os alunos não têm aula porque os professores faltam. Como faltam todos os profissionais, faltas essas que lhes são descontadas nas férias. O Senhor pode ter férias em qualquer altura do ano. Os professores só as podem ter em Agosto. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Já agora convém lembrar que se eu for ao Centro de Saúde e o médico faltar, sei eu e a meia dúzia de doentes marcados para esse dia. Isso passa-se em quase todas as profissões. Se um professor faltar sabem 100 alunos, 200 pais, 400 avós… Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Os professores que são pagos para ensinar a ler e a escrever são os do primeiro ciclo mas possivelmente o Senhor nunca teve a curiosidade de analisar o que consta na página [Organização Curricular] e ver o que é pedido a um professor do primeiro ciclo. A ambição é tão grande que tudo terá que ser dado pela rama. Daí os fracos resultados a Português e a Matemática. É que os professores que vêm a seguir têm, também eles, programas tão estupidamente extensos que não podem voltar a ensinar a ler, a escrever e a contar. São pagos para cumprir um programa que lhes é imposto e que têm que cumprir na íntegra. Os professores têm que dar em 70 aulas um programa que só se poderia dar em 100. E quem elabora os programas? As equipas nomeadas pela Ministra. Os professores não são ouvidos nessa matéria. E mais. Nessas 70 horas em que os professores têm que leccionar, a 28 alunos, conteúdos que só seriam devidamente dados em 100, os professores têm que se reger por um ensino individualizado, atendendo a inúmeras situações sociais gravíssimas como alunos que passam fome, que têm pais alcoólicos ou drogados, que não têm quarto para dormir, que apanham tareias tremendas dos pais, que trabalham no café do pai até à meia-noite ou mais, que têm famílias totalmente desestruturadas. E tantas, tantas situações sociais de que os professores não são responsáveis e a quem não devia competir dar solução. É mais uma obrigação do Governo que ele não soluciona. Os professores têm que ser pais, mães, psicólogos, assistentes sociais, e sei lá que mais. Chegam a comprar, do seu dinheiro, material de trabalho para alunos cujas famílias os não podem comprar. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Os professores, na sua quase totalidade, querem ser avaliados. Devo dizer-lhe que, durante uns anos, escrevi sobre educação num semanário (onde sempre coloquei o meu endereço electrónico para qualquer tipo de críticas. Destrutiva, felizmente, nunca recebi nenhuma). Em 2003 escrevi: “Vem aí a avaliação dos funcionários públicos. Oxalá seja verdade. Oxalá seja para breve. Oxalá seja para valer. Oxalá esta reforma seja ajustada, justa e aplicada a todos os funcionários públicos. Todos mesmo. Aguardemos.” Muito antes de Maria de Lurdes Rodrigues tutelar o Ministério da Educação. Sou, portanto a favor da avaliação. Eu e a grande maioria. Mas custa-me aceitar que trabalhando diária e directamente com cerca de 200 pessoas, que sejam apenas duas a avaliar-me. Esta avaliação vai em frente porque em maiorias absolutas surgem os iluminados detentores da verdade absoluta e que podem dar-se a luxo de passar atestados de menoridade a toda uma classe, o que o Senhor também faz no seu artigo. O PM disse na televisão que as notas dos alunos são comparadas com as do ano anterior, as do exame e as das outras disciplinas. Isto só pode ser dito por quem não conhece o que se passa no terreno. Há disciplinas que se iniciam no 7º ano (não há avaliação do ano anterior) e não há exames no 8º ano (não se pode comparar com qualquer avaliação de exame). Se querem este tipo de avaliação instituam exames anuais. Pessoalmente estou de acordo. Sempre achei, e escrevi, que a comunicação social fazia interpretações erradas dos rankings das escolas. O que é mais importante é a diferença entre a avaliação interna e a avaliação de exame e não as avaliações em si. Se o DR 2/2008 afirma que a avaliação é de 2 em 2 anos seria lógico que este final de ano lectivo fosse destinado à elaboração dos inúmeros documentos necessários a toda a burocracia que este sistema contempla. Mas não. Esta equipa está lá há 3 anos e, num repente, a iluminada a um terço do final do ano lectivo quer que entre em vigor algo que demora a implementar e que requer reflexão e muitas reuniões. Não sei se sabe que os professores trabalham de manhã, de tarde e à noite. As reuniões chegam a acabar às 10 h da noite. Todo esse tempo é “oferecido” ao Estado. Não são horas extraordinárias, não são horas nocturnas, não fazem parte do seu horário de trabalho. Já cheguei, na altura de elaboração de horários a sair da escola às 2h da madrugada. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Mais. Todo este processo surge na sequência do concurso para professor titular que foi a maior vergonha e injustiça a que já assisti na minha longa carreira. Dou-lhe dois exemplos que provam o que digo. Uma excelente professora, do 10º escalão, assumiu na escola todos os cargos possíveis incluindo Presidente do Conselho Executivo. De repente morre-lhe uma irmã, de cancro, e deixa uma filha pequena. Essa colega pede para lhe não serem atribuídos cargos porque tinha o encargo de criar e educar a sobrinha. Como, nos últimos 7 anos não teve cargos, os pontos por ser assídua não lhe permitem aceder a professora titular. Simultaneamente, uma professora do 8º escalão, que não tinha horário no grupo, vai para o Conselho Executivo. Mesmo sendo “baldas”, com o cargo que tem, acede a professora titular. Podia imaginar inúmeras situações como estas. Eu fui provida como professora titular mas não posso aceitar, como o Senhor não aceitaria, que me “deitassem ao lixo” vinte e tal anos de serviço. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Os professores querem um ensino de qualidade mas também aqui lhe dou um exemplo concreto. Os Cursos Profissionais são organizados em harmonia com o referencial de formação. A sua candidatura é feita no final de um ano lectivo para o ano lectivo seguinte e, nessa altura, tem que ser integrar o Plano de Estudos, disciplinas, elencos modulares, e respectiva organização e articulação com a FCT, bem como o perfil de desempenho à saída do curso (Portaria 550C/2004). Com aulas a começar em meados de Setembro, a legislação referente a muitos desses curso foi publicada em 26 de Setembro. Quase um ano de atraso. E os professores a, como sempre, darem um jeito. A pressa de abrir um número de Cursos Profissionais e os Cursos de Educação e Formação que satisfizesse as estatísticas levou a que tudo começasse mal. Não havia legislação, não houve preparação dos professores para a essência destes cursos, que nada tem a ver com os cursos gerais, e as Direcções Regionais a pressionar para a aprovação desses alunos. E os professores, como sempre, a dar um jeito. Quem redige este tsunami de legislação e coordena a sua aplicação? Os senhores e senhoras da 5 de Outubro e das DREs que nunca estiveram no terreno ou que o fizeram no tempo dos Filipes. Basta ler as declarações do professor Fernando Charrua que ficou negativamente surpreendido, ao regressar à escola. Encontrou uma realidade que nada tinha a ver com a que ele tinha deixado há dezenas de anos. É essa a realidade que nós vivemos diariamente. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

A maior parte dos pais demitiu-se da sua função de educadores, por excelência, e acha que o seu papel termina no dia do parto. A partir daí a escola ensina, educa e insere na sociedade. E temos, nas escolas, as faltas de educação de respeito e até as agressões. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

E que faz o Ministério com o estatuto do aluno? Os alunos faltam porque lhes apetece ir jogar matrecos e o professor, quando o aluno resolve voltar à escola elabora-lhe uma prova e corrige-a (Lei 3/2008). Está-se a penalizar o professor pelas faltas injustificadas dos alunos. Se o aluno não obtiver aprovação nessa prova, o professor elabora um plano de recuperação para esses alunos, elabora outra prova e corrige-a. Volta-se a punir o professor. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Nos horários dos professores há horas destinadas apenas a acompanhar os alunos, tirar dúvidas ou ajudar os alunos mais fracos. Essas horas são parte integrante do horário do professor e, obviamente, fora do horário lectivo obrigatório dos alunos. Tenho uma hora para apoiar os meus alunos e para onde sugeri, entre outras medidas, o envio dos alunos mais fracos para os quais elaborei planos de recuperação. Desde o início do ano estive disponível na escola uma hora durante 18 semanas. Em 11 delas não apareceu um único aluno e em 3 apareceu 1 aluno. E estive eu disponível para ajudar quem não quer ser ajudado. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Tanta guerra por causa da assiduidade dos professores e incentiva-se a dos alunos. Isto é educar? Incutir nos jovens o dever da assiduidade é, a meu ver, educativo.

A legislação, desde que esta equipa ministerial tomou posse, chega à escola em catadupas. E, com o simplex, a burocracia nas escolas não pára de aumentar. Com os professores a elaborar provas, avaliações, planos, projectos, reuniões, actas, relatórios, … e a ler/analisar circulares, decretos-lei, despachos, ordens de serviço, regulamentos, regimentos,…, onde fica o tempo para preparar aulas? Que tempo fica para os alunos cumpridores a assíduos? Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

O dia dos professores, tal como o seu, só tem 24 horas. E os professores também têm família, também são pais e mães.

“A política do Governo colocou os interesses de pais e alunos acima dos privilégios dos professores” – diz o Senhor. Fez e fez mal. Como faz mal em financiar a CONFAP. Os interesses de todos os que constituem uma comunidade escolar são os mesmos. Não há que colocar acima nem abaixo. Os pais querem uma escola a tempo inteiro em vez de quererem horários de trabalho que lhes permita estar com os filhos. Querem que os professores lhes tomem conta dos filhos das 8h às 20h. Querem deixar os filhos no infantário e depois no “adolelescentário” todo o santo dia. Eu até entendo. Como a maior parte não os educou, “aturá-los” é uma prova de fogo. Então que sejam outros a fazê-lo. Os professores que não lhes podem dar as sapatadas que eles lhes deviam ter dado na altura certa porque aí os pais têm poder e tempo para ir pedir contas ou fazer “uma espera”. Será esse um privilégio ou uma regalia absurda?

Quando a Ministra esteve na RTP2 afirmou que há escolas que estão a pôr em prática, e muito bem, este modelo de avaliação. Quando a jornalista lhe pediu para identificar essas escolas, a Ministra respondeu que isso não fazia. Como o bom senso diz que as boas práticas são para divulgar e adoptar, adaptando, por quem elas tem acesso, a conclusão a tirar das palavras da Ministra são óbvias…

Quanto á ligação que o Senhor diz que me liga a um partido político, considero um abuso enorme e inadmissível. Como lhe disse tenho 36 anos de carreira. Nunca me filiaria em nenhum partido porque penso pela minha cabeça, digo o que penso, escrevo o que digo e assumo o que escrevo. Mas só o faço na educação porque é uma área que domino. Se todos escrevessem apenas sobre os assuntos que dominam não teríamos que ler e ouvir tanta barbaridade. Esse era um privilégio e uma regalia que todos merecíamos.

Generalizar é sempre cometer um erro grave e o Senhor, como jornalista, deveria saber isso melhor que ninguém. Há maus professores, como há maus jornalistas (e o Senhor sabe-o), como há maus profissionais em todas as áreas. “A vergonha deu lugar à pouca vergonha neste sítio.” Perfeitamente de acordo. Mas em todas as classes. Sejamos honestos e imparciais.

Espero ter-lhe fornecido alguns conhecimentos sobre o sistema educativo e, se precisar de mais esclarecimentos, estou ao dispor.

E, para terminar, se há classe que não tem moral para falar em privilégios e regalias absurdas é exactamente a classe dos jornalistas.

Maria da Graça Pimentel

1 comentário:

Anónimo disse...

Tenho pena ..mas os jornalistas ( com raras excepções) tem todos a mania que são os profundo conhecedores dos assuntos que escrevem...têm conhecimento parcial e contaminado do assunto ...vêm sempre carregados de preconceito...então quando se fala de educação...não há paciencia...dá mesmo nojo...